segunda-feira, abril 04, 2016

e

Na terceira manhã
da terceira semana
do terceiro mês do ano
quando subia a Pascoal de Melo
vi a falecida melhor amiga
da minha mãe falecida.
Afligiu-me pensá-la
sem a sua companhia
- logo a minha mãe,
uma excelente solitária.
Vi no imenso volume do cabelo
grisalho sem tranças da Zulmira
uma nuvem diluviana
e chovi   logo de seguida.
Da mão pendia-lhe o mundo
num saco de plástico,
que não me recordo de vê-la sem carga.
Os pés não caminhavam sobre saltos,
o que sempre acontecia
mas as coisas já não eram as mesmas.
Logrei alcançar o meu bem-amado fantasma
ultrapassei-o silenciosa.
Era forçoso ver-lhe a cara
pelo que pus a minha à banda
para me deparar
nada mais  nada menos
do que com a da Adília.

quarta-feira, março 16, 2016

Filha febril

Adio a hora a que me deito
e já hibernas.
Antecipo o tempo de
moldares ao meu ventre os teus joelhos,
assentares nas minhas coxas
os teus pés pequenos e cálidos,
pousares-me nas faces as tuas mãos desenhadas
pela Josefa Ayala,
expirares sobre a minha boca
o teu hálito sem molares
suspirar-te a adoração que te tenho.
Prolongo a saudade só para ter mais dela
e menos horas até à alvorada
e assim ter de retardá-la.
Penso:
o teu pai sofre mais
porque nem o gato ronrona quando não estás.
Concluo:
não tenho gato.

Então enfrento a repulsa ao sono
que nos repara e alenta separadas
em terras com geografia plástica
deitadas sobre o mesmo lençol.

sexta-feira, março 11, 2016

c

O meio-dia corta a todo o comprimento
- nuca e nádegas tombam para trás
  cara e coxas para a frente.
As vísceras expostas primitivas
são anémonas decompostas
bairro de lata que exala salmoura
refeição verminosa macerada
de quem trabalha à jorna.

A morte nunca é prematura ou tardia.
Apenas seja todo do morrente
- indiviso  intacto  inspirado com exemplar comedimento -
o oxigénio nas suas cercanias.
Ninguém parasite a cabeceira
da carnal planta omnívora que,
preparada para devir semente,
nas pétalas pressente os passos
sobre o último vaso.

terça-feira, março 08, 2016

b

A família é um leviatã mesquinho e áspero.
Os homens são ditadores
as mulheres emudecem na hora grisalha.
Não que não ame mas convém-lhe o charme discreto da burguesia
o crapô e séries televisivas devoradas em salas de estar estanques.
Quem insistir na deserção do social-presídio
nada acolhedor e pré-requisitivo
terá de prescindir da franquia.
Rasgue-se a continuidade patriarcal gregária
resignada e desagregadora anímica.
Precipitemo-nos na greta da terra
sejamos espermatozoides
trinquemos um óvulo
medremos no ventre nocturno.

A minha linhagem é a dos amigos,
espécie marsupial atípica com cronologia aleatória
solitários com encontros marcados
- gestei-os e eles gestaram-me.
Temos sangue dourado e isso
nem os deuses.

quarta-feira, dezembro 09, 2015

5 anos

Há cinco anos, pelas 19 horas, a minha mãe morria. De súbito e de vez, sem falsos alarmes nem degradação lenta. Sei-o pelo que encontrei no local do óbito: computadores desligados, apenas a luz junto à saída acesa e uma única cadeira chegada atrás, a que ficava mais perto da porta. Nela posou, com atabalhoada urgência, o casaco e a mala para ir aos lavabos. Sei-o. Sabia-o durante os 45 minutos que passei de olhos presos à luz paralisada na frincha desde a ranhura da caixa do correio a aguardar a chegada da colega ao escritório, uma garagem térrea adaptada. Quando já não precisava de ser um envelope para franquear a porta e corri a libertar a luz arauta, vi-a contorcida sobre a cerâmica, olhos esbugalhados revirados, a boca num esgar de dentes partidos, um ânus de treva. A ela, a minha mãe. Percebi a intensidade da convulsão que a atravessou de uma ponta à outra e que tomou o seu tempo, quem sabe quantos segundos, minutos.
Até aí, o único horror que conheci foi o medo dos homens.

segunda-feira, junho 08, 2015

Violadores de Piauí

Os nossos corações de mercúrio
abominam os campos de Iaru,
os nossos falos repugnam conos
desde o vale ao delta do Nilo,

os dedos comem signos,
aniquilam fêmeas
mas deixam vestigia
até mãos alheias nos remeterem
à balança infalível da psicostasia.

segunda-feira, novembro 24, 2014

Faquir

Estas palavras:
«Agora batia-te e depois
dizia-te que a isso me levavas».
Um dia ouvi estas palavras.

 

Inventei então uma copa infinita,

cópulas fundistas oriundas

do país dos ilusionistas

com hermafroditas  sagitários

enfim bestiários  botânica parasitária

um metropolitano opiáceo

com carruagens almofadadas

túneis grená onde viajava

numa imobilidade ensimesmada

de modo a não sentir o arrepio.

terça-feira, outubro 21, 2014

Arcade

Despicable lover
but not for me
ever to play the role
of the outraged virgin.

I had rather say
there is nothing worthier
than the arcade you gaze
- bones gathered on the plate,
  greese and saliva all over the place.

segunda-feira, outubro 13, 2014

Aio

É ilusória a greve do palato.

Se não como mas recordo
o teu cheiro encarnado

o que importa a ausência
da seiva do jarro?