domingo, abril 28, 2013

Seiva

O sangue foge-me das veias
Observei a minha própria sepultura
e não estava vazia – já me continha
Alargo agora os elásticos constritivos da minha biografia,
descalço uma e depois outra meia
distraio a flora podal com os veios da madeira
pensando ”também através deles já correu seiva
como corre nos cactos que só contemplam areia"
Tudo parece perpassado e embebido de verdadejustiça.

terça-feira, abril 23, 2013

Animismo

Olho as coisas
através da película
da tela
da celulose fétida prensada
dos artefactos que me parecem
sempre animados e gesticulantes
- toco-as com um arranha-céus de vidro
de permeio.

Da lua do sol da terra,
onde me deito
para beijar os antípodas,
do cimento
do momento nómada
e inclemente,
periclitantes inteiros.
Os acordes são profusos
há luzes, gente bem-falante
e eu de caneta em punho
escrevente, extravagante,
informe e algo delirante.

Imóvel serei: película, tela, papel,
arranha-céus de vidro, lua, sol,
terra, cimento,
caneta no punho
delirante.

quinta-feira, abril 18, 2013

Desinteresse



Se te disser que não escrevo mais uma linha,
nem faço mais um desenho em fonemas
sem ser ungida pela água benta
que escorre da tua boca
por entre as tuas pernas,
espessa,
se a tua pena não titubear
uma ou outra letra?

Algures a montante do meu horizonte
existirá uma droga inspiradora
apesar da tua apatia,
um vocábulo que corra por mim acima
sem que eu sonhe com a tua risa,
um mundo onde não sejas
mão-de-obra e matéria-prima,
um não-lugar hipotético e patético
onde simplesmente inexistas
e que, por isso mesmo,
me desinteressa.

Algures uma sede que pode ser saciada
            uma mancha que pode ser apagada
            uma fome que pode ser satisfeita
            uma voz passível de ser silenciada.
Nenhuma será minha.

domingo, abril 14, 2013

Tricot

A verdade é-me oferecida
pelos artistas que a talham.
Leio-a tricotada por mim
em camisolas de poucas filas,
pequenas, condensadas,
com pontos caídos,
feitas de fios roídos pelas
traças, cores mescladas,
remates imperfeitos,
isentos de mentiras.

Deus é malha.

sábado, abril 06, 2013

Um Verão



Mergulho no oceano
carne de Marte
devotamente crua

Asteroideu com centos
de minúsculos dedos,
trepa lento
afugenta-me os medos
entra por mim
e descobre outros
oceano e lua em Minos

domingo, março 31, 2013

Templos

No dia em que todas as agendas do ocidente referem
o Filho do Homem,
o domingo em que regressou
depois de, sexta-feira, ter morrido na cruz,
nada mais nada menos do que "por nós",
só me lembro de ti, que morreste pela mesma morte,
deixando dois templos que não têm alternativa a adorar-te,
dois mausoléus de matéria orgânica e costas viradas,
capela mortuária com capela mortuária,
cultos belicosos da mesma entidade,
dois seres ignominiosos e antagónicos
que não te fazem justiça,
tal como catolicismo e ortodoxia
não fazem jus ao Cristo
e menos ainda a Maria.

sexta-feira, março 29, 2013

Biologia

A janela agiganta-se quando penetras na esquadria
abre-se de par em par sobre o teu colo primaveril
a rebentar de potenciais crianças,
azedas amarelas e aromáticas.
O caule dilata-se até ao teu pescoço agasalhado
irrigado pelo ouro fundido que reflui
de regresso ao bairro calcetado e bifurcado.

Os sentimentos microbianos foram erradicados
ou ter-se-ão ampliado?

sábado, março 23, 2013

Copperfields



Daqui a nada, festa –
cheiros, braços, pernas,
dentes arreganhados
cabelos cuidados
despromovidos a desgrenhados
num país açaimado
por um anjo retrógrado
que não se recusa a derrubar pela segunda vez
o muro de Berlim

Somos Arquimedes, Houdinis,
os David Copperfields de Dickens
que comem mar, sol,
iguarias bem mais tenras que metal.

quarta-feira, março 20, 2013

O lobo e o colibri

Nem cumprindo o trajecto inverso
poderia esquecer a nudez
que imperava sobre o nosso encontro.
Embebida de rituais de intersecção
tornou complexo e escrúpulo
os nossos corpos um no outro,
quando outrora morremos na boca
e tudo isso era puro.

Por mais que escale cavidades dentárias
não hei-de alcançar a ponta da tua língua.