domingo, junho 21, 2009

Grandes acidentes

É muito difícil despertar a poesia em nós, Vasco.
Tudo isto é muito vago.
A criação é uma incógnita,
Tudo é fictício
Dolorosamente verosimilhante
Mas também obra acaso.
Lembra-te do dia em que pisaste aquele prego enferrujado.
Logo a seguir tiveste de ser vacinado contra o tétano,
Mas tu sabes lá o que é isso.
Sabes lá o que é uma doença
Que te importa qual é a maleita
Desde que acordes de olhos bem abertos
E á noite te deites numa cama bem feita
Acorda desse torpor e escuta o que te diz a tua Andreia:
Não me interessa o teu receio,
Interessa-me a tua ferida, Vasco,
Interessa-me o teu tétano.
Só quero saber do teu pathos
Seja ele a suma verdade do mundo.

sexta-feira, junho 19, 2009

coisas roxas

o fingimento pode ser uma coisa tão bonita
como uma violeta escondida
atrás de um alçapão húmido
no fundo de um vão de escada

algo tão escondido como um olho de vidro roxo
oculto por óculos escuros
algo tão discreto quanto um diamante
no meio dos cubos de gelo
da minha bebida

um boneco que brinca nas mãos de uma menina
lembra a importância do movimento da dança
o modo como me observas
no fechamento do fascínio pela máscara

o amor é fingimento conquanto é abnegação.
a violeta atrás do alçapão húmido é lindíssima
mas o mais belo são as máscaras
que desfilam o tempo todo à nossa frente

quarta-feira, junho 17, 2009

Sto. António II

Sto. António que me deste
a minha casinha na Bica
trabalho na casa da senhora de Benfica
e o meu marido que está preso em Caxias
Esta noite dá-me a vitória na Avenida
um amante estrangeiro
muito vinho
sardinha viva e prateada

terça-feira, junho 16, 2009

plano

quero voltar a encontrar
a minha cara cinzenta
aquela que, no segundo seguinte,
se torna amarela ou magenta
quero conseguir discernir
o branquíssimo cabelo
na cabeleira preta
reencontrar a faceta vermelha
que habita toda a página branca

quinta-feira, junho 11, 2009

Sto. António

Ó meu rico Sto. António
A ti raramente escrevi
Mas se de facto já o fiz,
nunca foi por necessidade

Maridos tive-os aos montes
E já matei imensos manjericos
Também tive noites de festa dementes
Por isso só te peço que não me invejes

domingo, dezembro 21, 2008

Ocidente

Não sei se reparaste
mas caminhei para nascente
quando devia ter caminhado para poente
Aliás, devia caminhar sempre para poente
até chegar a nascente
Como os ponteiros giram da esquerda para a direita
eu caminho para poente
Não como quem persegue o sol
mas como quem foge dele
numa condição de bacante viandante

sábado, novembro 25, 2006

Tempesta

O dia estava
na verdade
negro.
O mar estava medonho.
Olhei-o nos olhos
eternamente tristonhos

Quero apenas dizer-te
que dentro deste eterno encontro verde
nada pode esmorecer.

terça-feira, abril 25, 2006

Pupila

Na madrugada
desperta
as minhas pupilas
fitam as tuas pálpebras fechadas
Os teus espasmos
despertam-me para o amorfismo
da minha vigília
nenhum conforto me advém do teu
belo sono moreno.

Esmaga
com o teu corpo
os frutos podres de Morfeu
meu Orfeu.

terça-feira, dezembro 27, 2005

Matérias

Quem diria
finalmente a paz
Pedras de sal caem sobre o telheiro
Dir-se-ia
"gotas de chuva!"
Mas não são
Pedras de sal são
Mens são in corpore são
São sãs?
As gotas de chuva,
são sãs?
Sim são.
Parece que sim
Parece que não
São são.
São não.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Ulisses regressado

Deitado
imprimo igual empenho
na apatia e no fabrico
de rodas de fumo.

Penélope tece
dedicada.
Estarei mesmo em Ítaca?
Quem deverei consultar:
Hades, Zeus, a Pítia?
Nenhum.
Ítaca há-de ser
onde Penélope tecer.