sexta-feira, agosto 05, 2005

Requiem

Entre quatro paredes
de pedra dura
rogo-te que me magoes.
Relembra-me o corpo
e silenciarás a dor
num destes dias
de papier-maché
desses jornais
que descrevem o fogo
a cinza o fumo sobre a cidade
durante o horrível crepúsculo.
Que seja um requiem este opúsculo.

sexta-feira, julho 15, 2005

Milonga

Porque amo os teus cotovelos
eles são as esquinas mágicas
da minha imaginação
o prazer que nunca antes existiu
porque nunca antes me lembrei
porque nunca antes quaisquer cotovelos amei.
Não receio a sua aspereza
insisto não os amaciar com azeite
não os marinar em limão
os teus cotovelos precederão
o teu convexo.

segunda-feira, junho 20, 2005

Fim de noite

Numa noite quente
servida num cálice de tédio
um italiano canta
"Je m'en fous de mon passé".
Je suis d'accord
ma non troppo.
O português que estudou em Treviso
conquista a Alemanha Federal
(ou uma das suas Valquírias).
Enquanto isso,
a brisa lisboeta cai
sobre o meu bloco
um tudo nada arménio.

quinta-feira, junho 16, 2005

Comédia

O sono que pesa sobre as pálpebras
arrasta-me os braços e as pernas
num baloiço de penas.
Chronos, velho e pançudo,
rouba-me o corpo rabudo
para que o meu espírito possa
finalmente
baloiçar.

Nesse continente de querubins sem asas
dotados de helénicos marsapos
as Adrianas têm
de facto
muito por que suspirar.

É neste estádio
que encontro o gato burguês,
aquele que
por influência dos homens
não gostava de ratos
e não comia gatas.

quarta-feira, abril 27, 2005

Ilha do tesouro

Jazida no caixão
encarcerada
Implantaram-me
finalmente no planeta.
Vermes e novas raízes já me encontraram.
Banqueteiam-se agora no meu ventre
gruta onde germinou a semente
cujo fruto verde crianças
e duendes
colheram à paulada.
Uma vinha ensolarada 
e infectada
é agora um verdadeiro repasto
Vive na Ilha de Samoa.

quinta-feira, abril 14, 2005

Odisseus

Até quando
a condição de apátrida
o vaguear de quem quer mas não consegue
de quem conseguiria mas não quer
criar raízes

no recato
abundar  procriar

Para quê cheirar cada torrão de terra
(a)palpar pedras e rochas
- porquê picar-me na agulha da roca?

Talvez inveje
as coisa sedentárias
toda essa comunidade

inerte que me espera e serve
sem revolta ou querer.
Nessa sua sonolência,
não me deixa dormir,
indiferente à minha vigilância.

terça-feira, abril 12, 2005

Flora encarnada

Um beijo doce e corpo magro
são tudo o que gostaria de ter
clavículas como caules
a irromper
 do radículo
cerejas cor de mamilo
cabelo e pêlo macios
garras de água
sorriso desmedido
para depositar sobre

o túmulo do meu amor

quarta-feira, março 23, 2005

Amorphos

A verdade de verdade
é que só quero decompor-me
evaporar
Inexprimível o horror
que vejo.
(E bebo novamente o espelho
E bebo novamente o espelho)