terça-feira, dezembro 27, 2005

Matérias

Quem diria
finalmente a paz
Pedras de sal caem sobre o telheiro
Dir-se-ia
"gotas de chuva!"
Mas não são
Pedras de sal são
Mens são in corpore são
São sãs?
As gotas de chuva,
são sãs?
Sim são.
Parece que sim
Parece que não
São são.
São não.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Ulisses regressado

Deitado
imprimo igual empenho
na apatia e no fabrico
de rodas de fumo.

Penélope tece
dedicada.
Estarei mesmo em Ítaca?
Quem deverei consultar:
Hades, Zeus, a Pítia?
Nenhum.
Ítaca há-de ser
onde Penélope tecer.

segunda-feira, outubro 31, 2005

Inquietação

O homem que come o caixote
do lixo sente certamente
o sabor amargo
das palavras que
de tempos a tempos
assolam o pensamento
de qualquer sujeito
A pele das batatas ainda não oxidou.
Já o leite, azedou.
Estaria a mama da mãe seca?
Treme a mão?

quarta-feira, setembro 07, 2005

Hier soir

Hier soir j'ai fait le trottoir
Restos de pó de papoila
comprimidos estropiados
dejectos fossilizados
cantaria decomposta
a súcia que explora.
Piso a avenida.
Ziguezagueando espectros,
reconfortei-me no jejum
afoguei-me num copo de água
satisfez-me a bolha
filha do salto agulha.

sexta-feira, agosto 05, 2005

Requiem

Entre quatro paredes
de pedra dura
rogo-te que me magoes.
Relembra-me o corpo
e silenciarás a dor
num destes dias
de papier-maché
desses jornais
que descrevem o fogo
a cinza o fumo sobre a cidade
durante o horrível crepúsculo.
Que seja um requiem este opúsculo.

sexta-feira, julho 15, 2005

Milonga

Porque amo os teus cotovelos
eles são as esquinas mágicas
da minha imaginação
o prazer que nunca antes existiu
porque nunca antes me lembrei
porque nunca antes quaisquer cotovelos amei.
Não receio a sua aspereza
insisto não os amaciar com azeite
não os marinar em limão
os teus cotovelos precederão
o teu convexo.

segunda-feira, junho 20, 2005

Fim de noite

Numa noite quente
servida num cálice de tédio
um italiano canta
"Je m'en fous de mon passé".
Je suis d'accord
ma non troppo.
O português que estudou em Treviso
conquista a Alemanha Federal
(ou uma das suas Valquírias).
Enquanto isso,
a brisa lisboeta cai
sobre o meu bloco
um tudo nada arménio.

quinta-feira, junho 16, 2005

Comédia

O sono que pesa sobre as pálpebras
arrasta-me os braços e as pernas
num baloiço de penas.
Chronos, velho e pançudo,
rouba-me o corpo rabudo
para que o meu espírito possa
finalmente
baloiçar.

Nesse continente de querubins sem asas
dotados de helénicos marsapos
as Adrianas têm
de facto
muito por que suspirar.

É neste estádio
que encontro o gato burguês,
aquele que
por influência dos homens
não gostava de ratos
e não comia gatas.

quarta-feira, abril 27, 2005

Ilha do tesouro

Jazida no caixão
encarcerada
Implantaram-me
finalmente no planeta.
Vermes e novas raízes já me encontraram.
Banqueteiam-se agora no meu ventre
gruta onde germinou a semente
cujo fruto verde crianças
e duendes
colheram à paulada.
Uma vinha ensolarada 
e infectada
é agora um verdadeiro repasto
Vive na Ilha de Samoa.

quinta-feira, abril 14, 2005

Odisseus

Até quando
a condição de apátrida
o vaguear de quem quer mas não consegue
de quem conseguiria mas não quer
criar raízes

no recato
abundar  procriar

Para quê cheirar cada torrão de terra
(a)palpar pedras e rochas
- porquê picar-me na agulha da roca?

Talvez inveje
as coisa sedentárias
toda essa comunidade

inerte que me espera e serve
sem revolta ou querer.
Nessa sua sonolência,
não me deixa dormir,
indiferente à minha vigilância.

terça-feira, abril 12, 2005

Flora encarnada

Um beijo doce e corpo magro
são tudo o que gostaria de ter
clavículas como caules
a irromper
 do radículo
cerejas cor de mamilo
cabelo e pêlo macios
garras de água
sorriso desmedido
para depositar sobre

o túmulo do meu amor

quarta-feira, março 23, 2005

Amorphos

A verdade de verdade
é que só quero decompor-me
evaporar
Inexprimível o horror
que vejo.
(E bebo novamente o espelho
E bebo novamente o espelho)