terça-feira, julho 24, 2012

anelar

se eu pudesse
morava neste quiosque
observava as árvores o tempo todo
e fumava cigarros sem parar
via os rapazes a passar
e as raparigas também
embebedava-me em cada noite do estio
depois de um ocaso verde

de noite, recebia-te,
meu amante

domingo, maio 13, 2012

Ribeira

Ribeira, eras o nosso bazar
As flores e as cabeças de peixe
com olhos vítreos fitando uma última recordação de mar
no Tejo
boca entreaberta
que procurava uma última golfada de ar
fugindo aterrorizado da ideia de se tornar carcaça
vermelho vivo sucumbindo atrás da prata das gélidas escamas
até se vir sobre a bancada
e a posta de pescada
do cliente incauto
que morreria de asca
se conhecesse estas vicissitudes
do peixe que, apetitoso,
lhe jaz agora no prato

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Geronte

Aquelas folhas
no chão
pertencem àquela árvore
Folhas verdejantes na copa,
lá medram sem cópula
e no outono caem pelo chão
A árvore ensimesmada
esquece-se de que lá estão
As folhas são jovens
As árvores persistirão

sábado, outubro 29, 2011

Epifania

o horror do nada
ou o nada é que é o horror?

o mergulho na água,
mar sem princípio,
ilimitado,
e eterno cantor

os dedos do bebé
o riso de cristal
Maria Helena semi-submersa
nessa massa salgada
que é o oposto da terra

quarta-feira, dezembro 29, 2010

Contratempos

Sentimentos,
massa homogénea
de histeria e sal
lugares de ausência da ciência
onde nascem sangue, cores, relevos
que já nada têm de mental

Uma terra de tormenta
esquecida por Apolo
escarpa acima, escarpa a baixo
este corpo luta
nesta estrutura imaterial

Por mais estranho que pareça,
o debate faz sentido

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Templo

o coração já não batia
mas o relógio ainda tiquetava
nesse dia em que envelheci vinte anos
de uma penada
enganada que fui
- ou que andava -
por um tempo
que me interrogo se será criança
ou um velho de barba

não questionei o valor da vida
das coisas
se somos realmente livres
felizes
não reclamei de nada

a lágrima, essa sim, rolava
pelo meu rosto sem atrito
provavelmente inexpressivo
que reflectia uma alma embebida em tristeza resignada

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Carne e osso

Se isto der para o torto
e um dia eu não for mais que uma alma penada
não ajas como se não se passasse nada
revolta-te, chora
e exige ao destino o meu regresso
E não sejas reservado
- quero ouvir e ver o teu nojo do outro lado
Cerra os punhos e esmurra o chão
com máxima indignação
impregna as minhas fotografias com lágrimas
até o sódio corroer a emulsão
Desce a Rua da Saudade
Mais a da Atalaia
sustém-te nas Portas de Sto. Antão
fita as encostas das nossas colinas
e lembra-te de que eu era como elas
- de que eu era elas -
grita que não me perdoarás os hífenes e as gralhas
até eu estar
de carne e osso
ao teu lado deitada

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Herbário

O papel impresso
deve ser a matéria mais doce que conheço
Agradeço ao meu livro
estas horas passadas debaixo
do amarelo-dourado verde
quando divindades diversas
provenientes de mitologias
remotas e desconhecidas
cantadas por um poeta desdentado
me povoaram o olhar
por detrás da córnea
e me beijaram o veludo
pela ganga resguardado
permitindo-me escrevinhar estes versos miúdos
que saltaram desta caldeira
onde ultimamente não tem ardido muita lenha

sexta-feira, setembro 25, 2009

Escritório

absolutamente compenetrada nas letras
cismava
Joana (j... g... g... d)
procurava, com certa urgência, algum sentido
entre palavras
signos
sapatos e solas
debaixo de um céu cheio de migalhas cintilantes
após um jantar de seres transcendentes,
Joana reproduz na mente o repasto
de olhos fitos nos diamantes pregados no breu
dá tragos no álcool e no cigarro
prega o bico da caneta no bloco de papel pardo

a pedraria brilha,
não nos dedos
nem naquele céu desaluado,
mas na folha de papel pardo
daquelo bloco garatujado

quarta-feira, julho 08, 2009

Ceias lisboetas

Merendeira, Merendeira
que aqueces as nossas noites com caldo verde
como o Alberto com a mão de vaca com grão
como o Vítor com a cachupa e pastéis de feijão

todos comemos iguarias mestiças
na nossa noite tremendamente lisboeta
uma escuridão condimentada
de África crioula
misturada com o norte de Portugal continental
e enchidos alentejanos

dêem-me chá de menta e cannabis
que me apetece o Magrebe
peixe com ananás do sudeste asiático

todas as delícias do mundo devem ser saboreadas
no abismo do imediato